sexta-feira, 17 de abril de 2009

João Espera Mortis



Baseado em milhões de fatos reais:


As 5 da manhã o despertar doía na alma desse pobre ser humano sem alma que sabia que enfrentaria sol, chuva e chibatadas no lombo para produzir cada vez mais para seu senhor, suas refeições eram restos sagrados, os restos de sua dignidade que ele engolia a seco todos os dias, dormir em um chão gelado não era problema, pois ele tinha o luxo de dormir num lugar coberto, fazendo companhia aos ratos. Essa é a história de um homem que não podia amar, essa mais parece a história de um cavalo e sua cocheira, essa é a história de milhões de brasileiros.
João e sua dor caminham pelo asfalto quente sem saber onde será sua próxima morada, quando será sua próxima sopa da madrugada, se hoje ele não terá que comer comida estragada. Sob os efeitos do tempo o corpo padece e a alma se fortalece, quase se desliga do ser em um estado de inércia forçada, uma catarse aristotélica provocada por um sistema onde o que vale é o marco zero, onde você só é gente se der sorte de nascer gente. Percebe-se no olhar, no cansaço, no apelo à morte, que será um dia de paz, um dia em que não precisará implorar, um dia em que não precisará colocar-se abaixo, não precisará ter vergonha, não precisará ser humilhado. João Espera Mortis está sentado em seu caixote e percebe o mundo a sua volta, talvez ele seja a evolução indígena perante a anti-evolução portuguesa, um ser destacado da sociedade, mais um homem invisível. Mas infelizmente não há mais o pé de manga, eles lhe deixaram com fome, não há mais o rio limpo, lhe deixaram com sede, mas ele tem o luxo de viver sob um teto, mesmo que nesse teto passem caminhões o dia todo, e ainda tem a companhia dos ratos, já que os bois os homens resolveram comer e João segue com seus restos sagrados, com a dignidade que lhe resta e a vergonha na cara de poder bater no peito e dizer “Eu não faço parte disso”, e mais um dia João Espera Mortis descansa sem paz com suas flores murchas num jardim de Cristo ou Allah, deixando claro que não foi embora e que voltará para fazer-nos engolir lágrima por lágrima derramada por um homem que só queria se alimentar.


Texto: Ivan Cardozo

2 comentários:

  1. "talvez ele seja a evolução indígena perante a anti-evolução portuguesa"
    MUITO BOM, Ivan...perfeito!!!!

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  2. "talvez ele seja a evolução indígena perante a anti-evolução portuguesa, um ser destacado da sociedade, mais um homem invisível."

    Melhor parte.

    "O homem branco se diz civilizado
    Pois ele sabe como dominar
    O homem branco veio até meu vilarejo
    E agora ele diz que eu tenho de me ajoelhar"

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